terça-feira, 28 de julho de 2009

e nem motivo pra explicar.

Desperto. Insensata, a luz me dói nos olhos: maldigo o dia. Me desfaço do emaranhado de lençóis, levanto. Cambaleante, da cama até a escrivaninha, pego um cigarro. Acendo e lhe digo:

- Bom dia.

Você não diz nada. Sorrio constrangido antes que meus olhos caiam em meus pés. Adentro uma nuvem, um conforto triste me envolve apenas por saber. Mais um dia, só mais um.

Deixo nosso quarto, sem dizer qualquer outra palavra. Minha cabeça dói, sinto uma sede de secar rios. Aprecio a ressaca, ela me faz lembrar de que ainda estou vivo.

Na cozinha, outra cerveja. Outro dissabor. Sento numa cadeira, o copo e a garrafa na mesa e ao meu lado outra cadeira. Vazia. Lembro de quando você ainda se sentava ao meu lado nos almoços de domingo. Contente, ria de tudo e me fazia rir. Sem perceber, ponho-me a relembrar nossos momentos, como éramos antes de acabarmos assim. O dia em que nos conhecemos no Jardim Botânico: você usava um vestido branco estampado com delicadas flores coloridas, os caxinguelês festeiros a subir nas árvores e eu me apaixonando por você à primeira vista. Você fazia publicidade, estava no último semestre. Eu, administração. Nós dois na mesma universidade, como nunca tínhamos nos visto?

Começamos a namorar. Você me ligava todas as noites, mesmo quando não tinha nada para dizer, então riamos juntos feito bobos, crianças apaixonadas pela vida. Crianças. Nos casamos numa tarde de primavera, as árvores floridas da rua lembravam o jardim de nosso primeiro encontro. Você estava deslumbrante num vestido creme e o cabelo ruivo preso com uma tiara cravejada de pedras brilhantes. Uma princesa, a mulher mais linda do mundo. E morando juntos, nossa vida passou a ser maravilhosa, até mesmo quando nos desentendíamos e discutíamos por bobagens.

Contudo, de dois anos pra cá, tem sido assim: você me trata com indiferença e eu bebo cada vez mais e entristeço cada vez mais. Às vezes beiro à loucura quando digo que ainda te amo e você finge que não me escuta. Me dói pensar que você já não me ama, que cometeu o crime de nos deixar esmorecer. Quase te odeio ao pensar no quanto te amo. Lembra de quando planejamos ter uma filha? Já tínhamos até um nome: Sofia. Você dizia que esse nome combinava com meu sobrenome. Por que Sofia ainda não nasceu, passados três anos desde o nosso casamento? Onde foi que erramos?

Me levanto abrupto. Esbarro na mesa, o copo de cerveja cai e os cacos se espalham pelo chão da cozinha. Não importa, é só um copo e em cacos tenho contemplado a vida sem poder reclamar. Corro até o quarto para ver se você ainda está dormindo, mas você já não está mais lá. Ouço o barulho da tevê, vou até a sala e você também não está. Saiu outra vez sem dizer nada, me deixando aqui sozinho a pensar em você. Logo agora que eu precisava tanto lhe dizer, Amo. Mas o amor é assim: quando ele chega, completa todos os buracos da vida, quando acaba, a vida inteira se torna um buraco.

Caminho lentamente até o banheiro. No espelho, um homem de semblante triste, uma barba de dois meses, cabelo despenteado e sem corte, olhos de tanta idade – não, não pode ser eu. Eu tenho apenas vinte e cinco anos, uma vida confortável, uma bela esposa…

Esposa. O mundo pára. Escuto minha própria respiração: cansaço. Meu coração se esforça. Bate, apanha. Dói. Minhas retinas são o vazio, um brilho morto. Vontade de ser ontem. Vontade de acordar nunca ou, ontem, ser sempre. E brincar de roda, ser criança. E ser ventania. E ser luz de sol. E ser, apenas ser: feliz?

Conto um passo. Um segundo, um terceiro. Acabo outra vez na cozinha, onde preparo o almoço com carinho. Ponho seu prato na mesa, depois o meu. Você gosta quando cozinho para você – a maioria dos homens não faz isso.

Tudo pronto, do jeito que você gosta. E você mais uma vez não vem comer. Há quanto tempo não almoça em casa? Deve estar comendo porcarias por aí. Me preocupo tanto. Acabo comendo sozinho, engolindo minha solidão calado. De acompanhamento uma lágrima também solitária, e a cerveja que aos poucos me mata. Sem você, por você, o que eu não faço?

Acabo de comer. Lavo a louça e aos poucos vou voltando ao mundo dos homens. Este nó cego na garganta, este aperto no peito: as paredes do mundo me sufocam. Quero gritar, antes houvesse força. E se gritasse, você escutaria? Ouvi dizer que é primavera e que os dias têm sido lindos – deu na tevê. Eu só vejo chuva. Me molho, me mato. Bebo tempestade. As crianças nascem na primavera e na primavera os velhos também morrem. Onde foi que envelhecemos?

Volto para a sala. Sento no sofá e pego um jornal velho que encontro na mesinha de canto. Tem dois anos, está amarelado. Uma das manchetes diz:

“Jovem publicitária morre em acidente na Via Dutra”.

O telefone toca. Atendo. Não era você.

(Fernando Albuquerque)


Nunca houve, e talvez nunca haja. Foi amor, e muito.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Pulsando.

Esta calma é o tormento.
Este vento: calmaria.
Implícito em meu hábito, seus hábitos, suas manias.
Já me acostumei aos seus horários, seu jeito de ser, estou adaptado ao seu tudo e tiraria de letra caso soubesse em que lugar do mundo você está: o meu lugar.
No entanto, só sei que você existe e te procuro em todos os rostos femininos que avisto.
Invento nomes para você, me imagino em cidades que nunca visitei porque eu sei, só pode ser você.
Eu sinto, te sinto, me sinto ausente.
Conheço o som dos seus passos, são como meus passos, outros passos.
Respiro sua respiração e conto minhas próprias distancias em sua busca.
Me persigo pelas ruas, me preservo, me espero chegar em casa mas é em vão: não me encontro, não sei onde me escondi.
Desconheço este eu sem outro.
Tudo é feito de brancas páginas e sonhos.
Vivo a vida me alimentando do que ainda não vivi.
Transpiro ansiedade e agonia.
Saudade do futuro.
Seu futuro, quando será meu agora?
Como queria poder te mostrar agora o amor que tenho guardado para você, dizer o quanto te amo mesmo sem nunca ter te visto.
Abrir para você a primeira página de nossa história, um livro, o romance de nossas vidas.
Te encher e me encher de sorrisos.
Porém, o presente ainda é uma distancia silenciosa que desespera e enlouquece e eu não posso fazer nada além de continuar a te procurar.
Sinto, sento, espero reticente o momento em que este presente seja passado e ao teu lado o esqueça.


(Fernando Albuquerque)